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Referência Galeria de Arte em Brasília
transobjetos

Transobjetos

Transobjetos Atravessando a História

Evandro Salles

Amplamente disseminada entre os artistas contemporâneos, a prática inventada por Marcel Duchamp de transformar objetos do mundo cotidiano no que podemos denominar de objetos de linguagem – seus readymades – torna-se cada vez mais um instrumento plural, apresentando diferentes configurações e diferenciações que só a enriqueceram com o passar do tempo.

No começo dos anos 60 do século XX, Hélio Oiticica chamava de “transobjetos” a série de obras intitulada “Bólides” que são objetos de trânsito entre sujeito e objeto, entre matéria e linguagem, entre realidade e poesia. Em seus “Bólides” também usava objetos utilitários do mundo cotidiano transformando-os em objetos de linguagem que passavam, depois de sua ação, a “atravessar” sua função corriqueira, trazendo ao espectador uma função nova: a poética.

No texto Bólides, de 29 de outubro de 1963[1], Hélio Oiticica diferencia sua ação da ação de escolha ao acaso com a qual Duchamp baseava sua criação dos readymades. Oiticica, ao contrário de Duchamp, diz eleger um objeto pré-fabricado para construir uma obra a partir de uma idealização que o faz encontrá-lo no mundo. Alega uma função estética na razão mesma de sua escolha e o uso dessa característica na construção do objeto final. Apesar dessa distinção estrutural distanciá-lo da invenção duchampiana, alinhando-o ainda ao construtivismo, sua prática indica a complexidade e pluralidade do sistema de incorporação de objetos do mundo e as diferentes possibilidades de seu exercício.

A reunião de quatro artistas atuais - fazedores de transobjetos - em torno da ideia de apropriação e transformação de objetos do mundo cotidiano em objetos poéticos, evidencia essa pluralidade de possibilidades da “prática da apropriação” que se torna de alguma maneira fundamental no presente panorama da arte.

Tendo como origem uma série de trabalhos chamados “O Mundo como uma Laranja”, onde desfaz objetos como se fossem laranjas sendo descascadas, Ana Linnemann desconstroi coisas corriqueiras do mundo ou lhes dá autonomia através de movimentações insuspeitas e inusitadas. Surpreendentes e de intensa ação sobre o observador, que tem seu olhar subvertido pelo deslocamento de suas expectativas, os objetos de Ana Linnemann são postos diante do público através de uma estante que percorre a parede da galeria. Essa estante de alguma forma nos proporciona uma perspectiva de abordagem, uma sustentação não apenas para os objetos que recebe, mas para o olhar de quem os encontra. É como se estivessem ali nos esperando, quase nos espreitando. Mas usam o momento de nosso espanto para desestabilizar o mundo, desfazer nossas certezas, recriar nossas verdades.

Ana Miguel faz um uso distinto do princípio geral de apropriação: em um trabalho chamado “Amor a Kafka: relato de viagem”, ela transforma as suas próprias experiências de vida em acontecimentos poéticos de grande significação. Uma viagem à terra natal de Kafka, a compra de um livro do escritor em tcheco e de um dicionário, transformam-se no material bruto de uma obra que tem no jogo flutuante dos significantes sua intricada e delicada tessitura. A obra, feita literalmente com linhas e palavras que conectam o que nunca esteve junto, mas que a artista, através de sua ação de apropriação, coloca em contato, cria como que um novo tecido do mundo, um novo sentido para suas experiências, novas correspondências para os objetos que encontra e que reconfigura através de sua prática.

Mariana Manhães também usa em suas obras objetos do cotidiano. Trabalha com bules e xícaras que ganham voz e movimento através de filmes que ela elabora. Entretanto, seu jogo com o real se dá em duas camadas: primeiro, nessa apropriação através do filme onde objetos comuns ganham vida; depois, através da inserção desses filmes de objetos cheios de vida em outros objetos. São estranhos aparatos eletrônicos construídos com players, TVs, telas, cabos, temporizadores, tudo acoplado tomando formas autônomas que os tornam em si objetos híbridos, pois são eles próprios objetos-ficção, construções poéticas que, ao funcionarem, geram o que poderíamos chamar de almas para máquinas: a estranheza de reconhecer em objetos utilitários humanos, uma autonomia do humano e de sua da ação.

Eder Santos é um cineasta que faz cinema no meio do mundo. Ele entrelaça real e imaginário através de imagens de vídeo. O vídeo para Eder é uma espécie de fonte da matéria do mundo, instância onde a matéria-prima do mundo é retirada para a fabricação de realidade, ou de novas realidades. Assim, sem o menor pudor, Eder usa o vídeo para fazer mundos paralelos. Apropria-se de tudo: pássaros que voam no céu, paisagens, memórias e até outras obras de arte. Essas coisas passam a habitar novas esferas de realidade, mas tudo diante de nossos olhos. Vemos o que não existe. Na obra de Eder Santos, com o olhar fazemos existir o que vemos.

Assim, aqui estamos diante de obras que são, ao mesmo tempo, coisas conhecidas do mundo, mas que são também coisas que não reconhecemos mais como aquelas que representam. Os significados deslizam entre suas configurações, em meio a suas matérias. Chamamos a isso poesia, arte ou mistério. Deslizamento líquido. Assim, a arte atua como um líquido que penetra a esfera da linguagem, do reconhecimento do mundo: cada coisa tem um nome e uma função, sim, mas cada nome muda e cada função se perde quando o olhar através da arte - descascado como uma laranja - carrega os objetos para o abismo de sua re-significação

 

[1] Hélio Oiticica, catálogo da exposição. Edição Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris - Projeto Hélio Oiticica - 1992/97 - pag. 66.

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Claudio Tozzi

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